(apreciação
da obra: Calmaria II, de Tarsila do Amaral)
É
curioso, mas toda vez que me reencontro com a palavra “graça”,
ocorre-me a impressão de que ela nos põe em conexão com uma
abertura ou fissura presente no mundo, no cotidiano ou mesmo no curso
mais simples da vida. Se é óbvio que a vida é contingência pura,
tão óbvio que a cada ano somos tomados pela experiência do fim,
pela sensação do ponto final que nos lança para outras
continuidades, a graça, em contraluz a esta carga de contingência,
parece ser muito mais uma potência de esperança, uma explosão de
alegria e uma assustadora busca por mansidão.
A graça da vida está na descoberta desta mansidão. Nosso mestre
Jesus disse coisas admiráveis em relação a isso. Aos seus amigos
que estavam apavorados com o mar bravio, Jesus os advertiu para que
não tivessem medo, pois estava com eles; o mar se acalmou(Cf. Mt
8.26). Repare bem, Jesus propõe ser uma abertura de salvação ao
fechamento imposto pelo medo. Quando a mulher adúltera é apedrejada
pelo povo em sinal de condenação, Jesus mais uma vez intervém com
palavras de abertura: “Quem não tiver pecado que atire a
primeira pedra”(Jo 8. 7). A intervenção da graça que é
Jesus não só interrompe a condenação imposta pelo povo, mas salva
aquela mulher.
Quantas
vezes Jesus não se tornou a possibilidade de abertura para um mundo
fechado à violência, ao medo e à contingência da morte, do fim! O
convite “Vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos,
e eu vos aliviarei”(Mt 11. 28) é a prova de que a vida não
fecha seu ciclo sem que antes não ganhe verdadeiro sentido no
alívio, na paz trazida por Jesus. Quem não lembra dos que ladeavam
Jesus quase morto no alto da cruz, os ladrões, pedindo misericórdia,
mas antes murmuravam, “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo”(Lc
23. 39), blasfemavam, injuriavam. Não poucos de nós, também,
assim como estes ladrões, continuamos a murmurar por algo que nem
sequer entendemos ou desejamos de verdade.
Às
vezes reclamamos por alguma coisa que sequer precisamos. Não temos
discernimento para compreender o que Deus está querendo fazer
conosco há um mês, dois meses, um ano, uma década. Deus
simplesmente quer fazer algo maravilhoso conosco e tem uma vida toda
pra isso. Mas não temos paciência para agradecer o que Deus já
está fazendo e, por isso, murmuramos como fizeram os ladrões. Não
sabiam eles o que Jesus estava preparando: “Hoje estarás comigo
no paraíso”(Lc 23. 43).
Muitos
passam uma vida inteira atolados na contingência de uma vida sem
sentido; num trabalho exaustivo, com um salário miserável; numa
família conflitiva e desestruturada; numa sociedade hipócrita e
mentirosa; numa cultura ideológica dominante e alienante; num mundo
frio, sem calor humano, e violento, onde não há quase lugar para o
diálogo e os afetos. A vida, por sua própria contingência, já é
cheia de sofrimento e dor, imagine então se nos fecharmos nela
mesma, se nos irritarmos com qualquer besteira, se darmos lugar para
tolices, se passarmos o dia inteiro reclamando de tudo, ora, não
haverá lugar para a paz, a mansidão, uma vez que estaremos fechados
em nossa própria ignorância.
Pense,
então, se a vida já traz suas próprias desgraças, problemas e
mazelas, por que torná-la insuportável, quando podíamos aliviá-la
e torná-la melhor, cheia de graça!? Qual a graça da vida se ela
não produz maravilha alguma? Qual a graça da vida se ela está
fechada em si mesma? Eis a abertura para a graça da vida: paciência
e muita, muita mansidão.
Encontre
a graça da vida: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus”(Sl
46. 10).
Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em Teologia, Licenciatura em Filosofia, Esp. em Metafísica e
Pós-graduando em Estudos Clássicos pela UnB/Archai/Unesco.
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